Da Weasel
Relax Pré-milenar
A doninha está de volta, com um novo álbum que promete ser uma surpresa para muita gente: porque o som sofreu modificações, porque as letras suavizaram as críticas e, essencialmente, porque a atitude é outra.
Do regresso dos Da Weasel podia esperar-se uma série de diferenças que marcariam a evolução por que o grupo teria atravessado durante estes dois anos em que a banda de Pacman, Jay Jay Neige, Armando Teixeira, Virgul, Pedro Quaresma e Guilherme Silva não gravou. As esperanças de um eventual “4º Capítulo”, cheio das ambiências pesadas que caracterizavam aquele registo de 1997 e tiveram a importância de revelar, da forma magistral que a estreia com “Dou-lhe com A Alma” não conseguiu, um dos mais sólidos valores nacionais da geração pós-“Rapública”.
Na realidade, nem “Iniciação a Uma Vida Banal – O Manual”seguiu fielmente as premissas enunciadas nos anteriores trabalhos, nem é de todo um álbum incaracterístico que se reparte pelas duas margens; antes, revela a cada minuto o talento de composição e interpretação de um grupo demasiado eficaz para o meio, que se reconstrói não consoante as ondas mas seguindo o feeling, autenticamente. «Iniciação A Uma Vida Banal – O Manual» chegou ontem às lojas de discos, e há já algumas semanas que o single de apresentação, «Outro Nível», passa nas rádios e tem um vídeo disponível, uma rave privada de dezenas de pessoas.
Hoje, o Pac fala ao BLITZ sobre o disco e o que lhe associa, sobre o «império» que «com calma a doninha vai criando» [em «É Mesmo Assim (O Respeito)»] e sobre aquilo que no «Manual» mais causa espanto e desconfiança — o som mais depurado, mais «cheio», mais produzido, mais acessível, mais positivo, mais descompressionado; ou, como Pac prefere, mais «relax».
«Gravar o disco foi um pouco complicado, por várias razões; primeiro foi o produtor, o BiD [músico brasileiro que decide ir trabalhar para Los Angeles como produtor e tem hoje no currículo nomes como o de Chico Science], que estava planeado vir, de-pois não podia… isso fez-nos perder algum tempo. Felizmente ele acabou por vir, e trouxe coisas muito boas à banda, os temas ganharam muito com o trabalho dele. Quanto às músicas em si, ficaram muito diferentes daquilo que estava em maqueta, e que foi idealizado inicialmente. E foi uma coisa muito louca, assistir a essa transformação. Sabes que os Da Weasel sempre tiveram uma forma de trabalhar diferente, que afirmamos na boa, e é um bocado… ninja. Raramente ensaiamos, raramente levamos material para o estúdio já feito e, quando lá estamos, trabalhamos uma mistura de pré-produção com gravação. Mas desta vez houve já um mínimo trabalho de pré-produção, que depois ganhou muito mais importância em disco quando foi a gravar, a também com as ideias do BiD. Quando foi a altura de gravar, este foi o disco em que mais gente deu tudo de si, teve mais tempo para trabalhar e mais liberdade para isso e mais à-vontade, apesar de haver uma enorme pressão porque o BiD tinha um “timing” demarcado e muito curto, mas apesar dessa pressão toda houve uma liberdade que não houve nos outros discos, uma cena muito mais descontraída… Este disco revela o melhor do que nós somos, que os outros discos não revelavam… O “3º Capítulo” é um disco de que gosto imenso, mas é muito cru, é demasiado cru, mesmo. É “rough” demais. A composição das músicas era dura, temas como o “Pedaço de Arte”, que é um dos meus temas favoritos, tem um beat e uma linha de baixo duros… o “Tudo na Mesma”, de que também gosto bastante, também é um bocado nessa base.
Quando falo em duro, é isso mesmo, exceptuando o “Todagente” e o “Dúia”, que são os temas que têm mais produção. Todo o álbum era muito “rough”, e isso tem muito a ver com as fases que as pessoas passam e as coisas que estão a atravessar, e se reflecte depois um bocado na música que se faz. Nesse sentido, acho que o “Iniciação…” é um álbum mais composto, mais ornamentado, mas não demasiadamente; é um disco mais alegre, tem à partida uma onda mais positiva».
Positivo é um adjectivo que se adequa de forma flexível aos sons e às palavras que os Da Weasel escreveram para este disco, um misto de vibe com feeling que apregoa aos bons pensamentos, à curtição, e é uma ode às coisas simples da vida, uma homenagem à banalidade enquanto símbolo para todos os valores que deveriam ser universais, mas que infelizmente não podemos assegurar. Os Da Weasel resolveram dedicar um álbum aos ideais, que no fundo respondem pelos nomes das coisas de todos os dias.
«Iniciação A Uma Vida Banal — O Manual» encerra em si uma noção que já o «3º Capítulo» tratava, onde a ideia da vulgaridade das pessoas é dissecada sem tréguas em canções acusatórias como «Tudo Na Mesma», «Todagente» ou «Casos de Polícia».
Esta pose irónica, que explorava o banal no sentido mais rasteiro e vulgar do termo, foi posta em detrimento por uma outra, que trata, neste novo álbum, a banalidade sob um ponto de vista diferente, aquele de quem acredita nas pessoas e na sua capacidade para melhorar, e pensa que, ao invés de criticar os podres da vida, é talvez mais útil, e positivo, apontar para as coisas boas que ainda restam. E que nos devemos esforçar por construir.
«Nós queríamos fazer um disco conceitual, e a ideia do banal agradou-me bastante na altura, numa fase da minha vida. Mas antes sentia as coisas de maneira muito forte. Um tema, por exemplo, como o “Outro Nível”, adoro-o, mas é impossível um gajo estar sempre naquele estado, porque um dia é porreiro e outro já nem tanto [“Outro Nível”, o primeiro single de “Iniciação…”, é uma canção muito forte, com um refrão ritmado de guitarras alinhadas com as rimas debitadas, mas um rap feliz com a vida que convida à descontracção, à empatia, e à fruição das coisas simples, que “são sem dúvida o melhor da nossa vida”]. Mas orgulho-me imenso de ter escrito esse tema porque já me senti assim, já estive lá, percebes? Sem cenas nenhumas, uma coisa natural mesmo, estar noutro nível.
É uma curte mesmo transcendental… Então o “Iniciação…” é mesmo isso… havia inicialmente duas ideias: uma era explorar o irónico da coisa, a “iniciação a uma vida banal”, não a que é banal mas a que devia ser banal, não sei se já ouviste o tema escondido… [O novo álbum dos Da Weasel termina com um instrumental, “A Força Negra”, que após alguns minutos de silêncio irrompe por uma faixa escondida, “O Manual” propriamente dito, uma maqueta que os Da Weasel gravaram em casa.] A ideia original era essa atitude irónica sobre a banalidade, aquilo que deveria ser banal e não é, as coisas a que todos deveríamos ter direito e não temos, que são banais no sentido da serem comuns, simples, como o amor, a paz, a liberdade… E por outro lado, a “Iniciação a uma vida banal” tem também o sentido das coisas banais da vida que nos dão os maiores prazeres que temos, e são essenciais para toda a gente.
“O Real”, por exemplo, fala disso: o respeito da minha mãe, a amizade que tenho com amigos da minha criação, esse tipo de coisas super-importantes. Aqui havia a ideia da “iniciação a uma vida banal” com certas premissas que vêm no “(No Princípio era) O Verbo” [a primeira e melhor faixa do disco, onde se canta que «o manual não tem soluções — apenas algumas sugestões, outras tantas questões, envoltas em várias canções. À procura do caminho certo, nunca estivémos tão perto, o primeiro acto está no final — o livro fica aberto. A lição foi bem estudada, a rota foi traçada, tripulação motivada — a Doninha `tá preparada. Vai começar: desaperta o cinto e acende um cigarro, relaxa a tua mente como se fosse barro”], no “Manual”, o tal tema escondido, no “Outro Nível” e n’”0 Real” que apontam caminhos para essa tal iniciação. Mesmo “A Adicção” pode falar de uma vida banal».
«A Adicção (Ilusão/Desilusão)» é, a par com «O Remorso (O que é que se há-de fazer)», duas das músicas de «Iniciação…» com uma característica curiosa: o tema é tratado e dissecado sem que seja referido, através de sucessivas metáforas e animizações que, liricamente, expressam muito melhor o sentido das emoções que, dados os temas, têm de ser chamadas à pele: as drogas e a sida.
A primeira com ar de introspecção confessional, a segunda de modo irónico, à sua maneira explicam aquela que é uma recorrência estilística e, simultaneamente, uma tentativa de fugir ao óbvio. Uma reminiscência que ficou do filme «Os Viciosos», confessa Pac.
«Queria fazer as coisas de uma forma menos crua e directa mas mais poética, se calhar, porque apesar de todas estas coisas, ainda que sejam muito pesadas e negras tocam-me mesmo emotivamente. E a partir do momento em que sentes as coisas dessa maneira é natural que escrevas delas assim. Há coisas que escrevi com as quais aprendi bastante, que me marcaram muito, mesmo, eram o que sentia na altura. A evolução que aconteceu na escrita foi natural, há sempre uma maior preocupação porque dou bastante importância a isso, é o meu feeling mesmo e surge espontaneamente. Como músico que sou, ou como membro dos Da Weasel, acho que acabo por ser 60 por cento letrista e 40 por cento vocalista. Esta parte para mim é muito mais importante. É uma cena que acaba por ser egocêntrica… eu gosto de ficção, mas gosto mais de coisas reais. Escrevo mais sobre aquilo que se passa comigo, coisas banais que têm a ver com toda a gente. Acho que as diferenças que podem existir têm a ver com fases da banda, com a proximidade que existiu entre os membros dos Da Weasel, com o método de trabalho que foi um pouco diferente, e acho que a própria banda estava noutro feeling, que acabou por ser introduzido no disco. Mais à vontade para fazer tudo».
«(No Princípio era) O Verbo» é o melhor terna do disco, se não o melhor tema dos Da Weasel. Uma canção que embala a mente, como eles pedem na letra, e deixa o corpo embargado numa dolência deliciosa de que não apetece sair. Refrões de grande estirpe e música de origem prodigiosa é algo que aos Da Weasel nunca será cobrado, mas aqui, nestes cinco minutos, misturados os elementos básicos — as rimas de Pac partilhadas com o Virgul no refrão, as vozes de Sam a contribuir para o efeito alucinante da coisa e o brilho irresistível de um devaneio tecnológico que rega o final da música e a enche de grandeza, a faz subir pela espinha acima num crescendo de abertura de espírito para o álbum que se segue. Mesmo que as outras doze canções não fossem boas, a «Iniciação» valia por este tema. Ó álbum alia, frequentemente a um mesmo tempo, as várias sonoridades à volta das quais os Da Weasel se situavam, mas aqui num caldeirão de referências onde coexistem o habitual som da doninha, uma batida funky e hip-hop que a espaços se transmutava em rock, extremamente dúctil e eficiente, as rimas indignadas e magistralmente escritas, além de um pormenor importantíssimo: a qualidade musical. Escrito alternadamente por Armando Teixeira, Jay Jay Neige e Pedro Quaresma, num processo de composição democrático qb, este álbum é uma mostra da versatilidade musical que surge sempre da convivência de influências diferentes, que acaba numa diversidade sónica que nenhum outro disco revelava. Esta conjugação perfeita de efeitos electrónicos, por exemplo, a cargo da maquinaria de Teixeira, nasce da necessidade de criar para a banda novas pontes, novos públicos, novas expressões e evitar forçar uma leitura única da banda das muitas possíveis.
Eclectismos à parte, o resultado é um eficaz trabalho que, ainda assim, não reflecte a harmonia do equilíbrio espiritual que é «3º Capítulo», uma obra sem precedentes no panorama nacional que desfez definitivamente os preconceitos sobre a colaboração entre diferentes elementos sónicos na composição das músicas. Letras brilhantes, um talento discreto que se espelha em canções espirais negras e profundas, efeitos sonoros pouco habituais nos trilhos do hip-hop straight que os Da Weasel já não fazem, vozes fortes que rappam com suficiente convicção para arrancar as espinhas à normalidade, canções óptimas que marcaram a música portuguesa sem o impacto que mereciam, loops tecnológicos que Armando Teixeira domina e manipula com mestria, além do reconhecidíssimo crescimento do ex-Bizarra Locomotiva na arte da composição — e oiça-se o soberbo «(No Princípio era) O Verbo» e devam-se as vénias ao rapaz (e já agora à Pimpinela, a gata, também).