Enquanto permanece a ilusão de que o rap e o hip-hop são elementos consolidados da cena musical nacional, ilusão essa que se confirma como tal quando se observam os números relativos às vendas de discos desta área, a verdade é que há quem vá trilhando o seu caminho, pouco preocupado com o desenvolvimento do mercado e mais concentrado com a evolução dentro de portas, no estúdio ou na sala de ensaios.
Os Da Weasel, que agora editam o álbum «3º Capítulo», são, por ventura, o melhor exemplo para caracterizar esta situação. Sem grande projecção a nível de mercado (lembremos que, nos últimos meses, o nível médio de projecção de grupos portugueses subiu impressionantemente à custa de nomes como os Delfins, Santos e Pecadores, Pedro Abrunhosa, Paulo Gonzo ou mesmo António Variações) e até ao momento flutuando entre várias editoras, os Da Weasel lograram, neste «3º Capítulo», assinar aquele que, no que diz respeito ao hip-hop de raiz mais pura, mais old-school (se quisermos aceitar a terminologia), gravar o melhor disco que o nosso país viu produzir até ao momento. A questão, no entanto, não deixa de encerrar alguma complexidade.
Sem grande esforço aparente, os Da Weasel encontraram, dentro do grupo, as soluções necessárias para o aprofundar das pistas lançadas nos discos anteriores, «More Than 30 Motherf***s» e «Dou–lhe Com A Alma». Em termos de genuinidade, «3º Capítulo» parece mesmo estar mais perto daquilo que o grupo havia feito no primeiro disco do que em «Dou-lhe Com A Alma». Não que o segundo álbum não fosse um bom disco, a questão é que «3º Capítulo» recupera a crueza de grande parte do suporte musical de «More Than 30 Motherfmcks», com o baixo de João Nobre profundo e latejante e as batidos «a direito» o dispensarem grandes floreados dos outros elementos.
Não se pense, com isso, que «3º Capítulo» seja um álbum seco, sem chama, sendo que a prova está dada com «Todagente», o fantástico single que tem tudo para ser, este ano, aquilo que foi «Dançam No Huambo» (dos Kussondulola) há um par de anos atrás. «Todagente», o exemplo citado, pega num ambiente de «Missão Impossível» e resvala no melhor sentido até uma deliciosa bossa-nova que, a meio-caminho, dá espaço à vocalização ragga de Virgul, muito mais à-vontade neste disco do que aquilo que tem sido visto ao vivo. Entre o humor sarcástico e o relato frio, Pacman desliza com segurança por uma análise à sociedade moderna.
Menos emblemáticas do que em «Dou-lhe Com A Alma», as letras escritas para «3º Capítulo» estão, paradoxalmente ou talvez não, num nível bastante mais alto do que aquilo que se costuma escrever em língua portuguesa, Exemplos disso mesmo são «Pedaço de Arte», «Tudo Na Mesma», «Todagente», «O Serviço» ou «Cachimbo da Paz» (poucos segundos de sarcasmo narrado). Pacman consegue, neste álbum, mostrar que uma letra directa e actuante não é, forçosamente, uma letra feita de gírias inconsequentes.
Como as letras, o som de «3º Capitulo» é, visivelmente, e mais do que aquilo que o consumidor espera desfrutar, exactamente aquilo que os Da Weasel quiseram construir. Demonstrando um conhecimento actualmente valoroso em relação à manipulação de máquinas e à conjugação dos diferentes elementos, sejam eles os programações, as linhas de baixo, os exercícios na guitarra (que no hip-hop, é sabido, têm menos importância do que na maioria das outras «músicas»), os samples ou os instrumentos exteriores ao grupo, neste caso como o saxofone de Laurent Filipe («Duia» e «Encostei-me Para Trás Na Cadeira do Convés», este um tema com letra de Fernando Pessoa dito pelo actor Sinde Filipe) ou o Fender Rhodes de João Gomes («Duia»).
Marcado por um ambiente na generalidade pesado e profundo, «3º Capítulo» é um disco que se consome devagarinho, lentamente, tão lentamente como a própria ascensão do grupo no escadaria dos eleitos pelo sucesso comercial. Com iscas como «Todagente» e «Duia » (uma canção de amor), o impulso para que percorramos o resto do caminho fica feito. Depois disso, o mundo e o da experimentação com o ragga abstracto, os samples de discos gastos pelo uso, o saxofone delirante, as histórias por vezes comuns, outras vezes toldadas e exóticas… No início falava de complexidade.
Retomo agora a questão. Enquanto não for abandonada a ideia de que um disco como o dos Da Weasel (e lembro-me, a este respeito, dos discos dos Kussmdulola, General D e Cool Hipnoise) é para consumo interno em regime de protectorado, havemos de andar sempre a fazer figura de ursos, a lutar contra moinhos. Há-de restar sempre o consolo de termos os «nossos» melhores discos a vender ninharias dentro de portas. E quem é que quer isso? Quem e que quer que o mercado português seja entendido como aquele que é feito nos hipermercados (mesmo que esses ainda não contem para efeitos de tabelas)?
Pedro Gonçalves in Blitz